quinta-feira, 19 de julho de 2012

~ 37 ~




Vasco adormecera, com Smile aninhada aos seus pés. Acordou na madrugada de domingo, por instantes sem saber onde estava.
Reconhecendo o acolhedor espaço , afagou Smile:
- " E nós… parece que dormimos aqui…"
Dirigiu-se ao banho, passando pela porta entreaberta, revelando-se um vulto na cama. Aquele corpo, aquela pessoa, já em nada lhe interessava. Seguiu com indiferença e a água tépida varreu-lhe o cansaço e os vestígios de uma noite mal dormida.
Limpou com uma toalha a fina película de vapor que cobria o espelho, e nele deslumbrou o rosto de Mariana. Tão enigmático quanto ela. Vasco sorriu-lhe, com alegria e ternura. Já totalmente desperto, lembrou-se que no dia seguinte voltaria a encontrá-la. Sentiu a garganta apertada por uma força estranha e invisível.
Terminara de se barbear quando ouviu passos secos, acompanhados de uma vozinha infantil:
- "Paiiiiiiiiiiiiiiiiiiii ..."
A pequenita cruzava o corredor em sua direcção, ladeada por Smile. Baixando-se para a levantar, abraçou com força o corpinho frágil que pulava de satisfação. Apertou-a contra o peito, enquanto a criança despejava um chorrilho de palavras em todas as direcções.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

~ 36 ~



Continuando a arrumar, o rosto de Vasco desenhava-se em cada objecto.
O seu sorriso. Os fios de cabelo despenteados. Num impulso, correu para o atelier e com rápidos mas precisos traços, o esboço nasceu sob os seus olhos. Eis o retrato de Vasco e, agora, Mariana ouvia, com nitidez, a sua voz, as suas palavras.
…Já não estava sozinha.
Aproximou a folha de papel a Tomás, que a cheirou e dirigiu-lhe:
"Vês? - e admirando , acrescentou: É bonito. é um rapaz bonito. Consegues também ouvi-lo, Tomás?"
E a resposta leu-a nos olhos oblíquos que o lindo gato ergueu.

Instalando-se, Vasco ligou o écran enquanto acariciava a cabeça de Smile e levava a cerveja à boca. Procurou concentrar-se, mas em vão.
Não se sentia bem. Algo em si reclamava. Que lhe atrofiava os músculos e, sobretudo, o cérebro. Ou não. Reclinou-se na poltrona e interrogou-se, passando as mãos pelo cabelo:
"Mas que raio. que diabo, pareço um miúdo!"
E esta descoberta fê-lo soltar uma sonora gargalhada que inundou o aposento, a primeira desde que vira Mariana afastar-se no parque de estacionamento.

terça-feira, 17 de julho de 2012

~ 35 ~




Na cozinha, Vasco olhou em redor, como desconhecendo aquelas paredes, aparelhos e utensílios.Smile deitou-se debaixo da mesa, acompanhando-o com o olhar. Abriu e fechou portas, nada encontrou naquele espaço imaculadamente limpo e arrumado. Demasiado limpo. Demasiado arrumado.
Como se ninguém contasse com a sua chegada. Só Smile. Apenas Smile, a magnífica Smile. e agora, Mariana - Vasco sorriu no vazio perante este pensamento -, que o acompanhava, talvez sem saber.
Do frigorífico, serviu-se dos elementos necessários para uma sandwich fria. Retirou também, pensativo, uma cerveja, que rodou pelo gargalo.
Dirigiu-se, de novo, para o escritório minimalista. Smile seguiu os seus passos como uma sombra e expressão interrogativa, quanto eram os pensamentos do dono.

Enquanto desfazia a mala, Mariana sorria. Olhos tão brilhantes como os de Tomás, que a observava de cima da cómoda antiga. A casa vazia não a surpreendia. Até preferia, concluiu a contrariada Assim, permitia-lhe refugiar-se no silêncio, deixar falar os seus pensamentos. Continuava a sentir-se assustada, mas feliz. Nem a tranquilidade da casa a sossegava.. Uma estranha felicidade invadia-a, impelia-a sem saber para onde. Sentia uma força adormecida, que estava prestes a (re)nascer e, apesar de agitada, Mariana sentia-se em paz.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

~ 34 ~


Para lá do portão, conduziu devagar na estrada estreita que serpenteava entre o jardim. Vasco pretendia saborear a calma letárgica que sentia, antes de entrar em casa.

Foi recebido, com alegria, por Smile. A imponente labrador-negra saltitava à volta do carro, aguardando-o com satisfação. Vasco acariciou-lhe as orelhas e recordou, com saudade, a razão do nome: Smile sorria-lhe, ostentando dentes perfeitos, impedindo-o de se mover.
A custo, retirou os seus pertences e entrou na bela casa, de construção sólida e reconfortante. Vasco necessitava da solidez daquelas paredes.

Seguido por Smile, dirigiu-se ao [seu] escritório, constatando que a casa estava vazia: os gémeos tinham saído com amigos e a pequenina acompanhara a mãe, num aniversário. Recordou-se sem emoção, ao ler o pequeno papel, preenchido de letras frias e impessoais, a total ausência da família. Uma súbita vontade de abraçar os filhos apoderou-se de Vasco, que, devolvendo o papel ao local onde se encontrava, dirigiu-se para a cozinha, acompanhado de Smile.

domingo, 15 de julho de 2012

~ 33 ~



Desconhece quanto tempo ficou naquela sala. A penumbra invadia o espaço, invasora mas cúmplice. As horas passaram sem se aperceber, perdido nos momentos que passara na companhia de Mariana.

Estava a tornar-se uma constante. Sentia a sua presença, quase física, quase táctil, e, em contrapartida, sentia a sua falta. Uma falta atroz e [quase] torturante.

Contrariado, abandonou o edifício em direcção a casa, perdido em emoções tão contraditórias e surpreendentes.

sábado, 14 de julho de 2012

~ 32 ~




Dirigiu-se à copa e do frigorífico retirou uma cerveja sem álcool. Sentia sede, causada [talvez] pela viagem, justificou-se interiormente. Acercou-se de uma janela e observou a cidade, naquele quase fim de tarde primaveril. Imaginou Mariana. Onde estaria? Teria ido para casa? Quem teria à sua espera? Viu Mariana a abraçar um homem sem rosto e sentiu um aperto no peito. Com um esgar, atirou o resto da cerveja no lava-louças da copa, tentando expulsar o amargo que aquela visão lhe causava. Afastou-se da janela: via o cabelo de Mariana esvoaçar diante do seu rosto.
Seria possível que sentisse saudades? De uma estranha? Sacudiu a cabeça, rejeitando a ideia: Mariana [já] não era uma pessoa estranha.
Uma onda de dor varreu-lhe o corpo inteiro e Vasco soube, naquele exacto momento, que Mariana estaria ligada a ele. Para sempre.



sexta-feira, 13 de julho de 2012

~31 ~




A custo, Vasco encaminhou-se para o carro. Eufórico, mas, simultaneamente, [quase] triste. Feliz, mas contido. Sentia-se antagónico, nada habitual na sua personalidade naturalmente segura e optimista. Reviu-se no vidro do carro, ao colocar a café: reflectia um miúdo. De cabelo espetado e calções curtos. Só o olhar era o mesmo. O olhar 'líquido', atrevido, de petiz. O olhar da imensidão de terras de África, perdidas entre desertos. A mesma expressão que o acompanhara anos fora e que tantas portas lhe facilitara, entre negócios e mulheres. Seria, agora, uma barreira?
Mariana parecia ser imune a esse poder. A sua atitude reservada era superior a qualquer poder ou intimidação.
Vasco dirigiu-se ao escritório, que estava deserto. Sendo sábado, as crianças estariam ocupadas em actividades diversas e não sentia vontade de enfrentar a casa vazia. Não quando a presença de Mariana era tão intensa.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

~ 30 ~



Metendo a chave à porta, Mariana colocou a bagagem no hall, o casaco e a pasta num canapé. Tomás descia a imensa escadaria de madeira antiga, saltou, leve, para o corrimão, cheirando-a. Mariana pegou-lhe ao colo, murmurando palavras de afecto, carinho e saudade. 

O maravilhoso persa-azul não terminava de a cheirar, enquanto Mariana lhe afagava o pêlo macio, tão suave quanto os seus pensamentos. Tomás encarou-a com os seus olhos inquisidores e oblíquos. A elevada percepção felina compreendeu de imediato uma mudança, algo que Mariana levaria tempo a compreender e ainda mais a aceitar.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

~ 29 ~




Sem saber como, Mariana iniciou a marcha de regresso a casa. Casa. Um conjunto de 4 paredes revestia alguns bens de estimação. E Tomás.
Sorriu perante a saudade que sentia e constatou que ainda não tinha deixado de sorrir. As feições de Vasco povoavam-lhe a mente, transformando-a numa desconhecida diante de si: sem palavras, Mariana conduziu como um autómato.
Mariana receava e desejava que fosse [já] segunda-feira.
Sentia-se alegre e infantil.
Sentia-se viva.

terça-feira, 10 de julho de 2012

~28 ~




Ficou preso àquele vulto, cada vez mais pequeno. Vasco observava a figura de Mariana desaparecer no imenso estacionamento e sentiu um nó na garganta. Ficou imóvel. Sentia falta de ar.
Quem era, afinal, Mariana? Cada vez estava mais convicto que não era [apenas] uma mulher muito interessante: havia nela algo mais, algo mais profundo que o mistério encarcerado no seu olhar. Algo mais denso do que a sua boca calava.
Em breve, não interessaria quem era Mariana, mas sim quem podia vir a ser.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

~27~




Mariana arrumou a bagagem, resistindo à súbita vontade de olhar Vasco uma última vez. Entrando, sentou-se e reclinou a cabeça no encosto, pressionando as têmporas latejantes. O espelho-retrovisor devolveu-lhe o seu próprio rosto. Luzidio. Ofegante.


Rejuvenescida. Tinha um brilho [quase] desconhecido.
Sorriu para a sua imagem, sorriu para a sua alma. Sentia-se resplandecente.
O culpado... era Vasco.