sábado, 25 de fevereiro de 2012

~8~



Inspirou profundamente e exalou o ar com lentidão, recuperando assim da vertigem. A custo, Vasco encaminhou-se para a bancada. De imediato, Tomás, que observara, com os seus olhos oblíquos e misteriosos, a sua entrada, saltou e, aproximando-se de Vasco, soltou um miado quase inaudível. “Queres comer, não é?”, enquanto lhe afagava o pêlo suave, liso de macio do lindo persa-azul de Mariana. “Sentes tanto a falta dela…” Tomás mirou-o com o seu olhar sempre interrogativo e debruçou-se perante a tigela. Observando-o com satisfação, as mãos de Vasco depararam-se com o livro que Mariana deixara…ainda estava no mesmo sítio. Abriu a página marcada, retirou o marcador de madeira talhado à mão e, sob os seus olhos, as letras dançavam:


ME ENCANTE

Me encante da maneira que você quiser, como você souber.
Me encante, para que eu possa me dar...

Me encante nos mínimos detalhes.
Saiba me sorrir: aquele sorriso malicioso,
Gostoso, inocente e carente.

Me encante com suas mãos,
Gesticule quando for preciso.
Me toque, quero correr esse risco.

Me acarinhe se quiser...
Vou fingir que não entendo,
Que nem queria esse momento.

Me encante com seus olhos...
Me olhe profundo, mas só por um segundo.
Depois desvie o seu olhar.
Como se o meu olhar,
Não tivesse conseguido te encantar...

E então, volte a me fitar.
Tão profundamente, que eu fique perdido.
Sem saber o que falar...

Me encante com suas palavras...
Me fale dos seus sonhos, dos seus prazeres.
Me conte segredos, sem medos,
E depois me diga o quanto te encantei.

Me encante com serenidade...
Mas não se esqueça também,
Que tem que ser com simplicidade,
Não pode haver maldade.

Me encante com uma certa calma,
Sem pressa. Tente entender a minha alma.

Me encante como você fez com o seu primeiro namorado...
Sem subterfúgios, sem cálculos, sem dúvidas, com certeza.

Me encante na calada da madrugada,
Na luz do sol ou embaixo da chuva....

Me encante sem dizer nada, ou até dizendo tudo.
Sorrindo ou chorando. Triste ou alegre...
Mas, me encante de verdade, com vontade...

Que depois, eu te confesso que me apaixonei,
E prometo te encantar por todos os dias...
Pelo resto das nossas vidas!!!

Neruda, um dos predilectos de Mariana. Recordou com serões, passados à lareira, em que a voz melodiosa de Mariana enchia a sala, com as palavras de Pablo Neruda.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

~7~


Recostou-se no canapé, percorrendo com os dedos finos o desenho estampado no tecido brocado. Mariana observava a que caia na rua, vendo as gotas desenharem no vido da janela: “ Sinto a tua falta” e, por detrás, o rosto de Vasco, que lhe sorria.

O temporal desdobrava-se em vento, que lhe despenteava os pensamentos, transportando-a para longe: “Leva-me para o nosso tempo”, apelou.

~6~



Entrou na cozinha, atirando o sobretudo molhado para cima de uma cadeira. Os olhos fugiram-lhe para o pequeno pedaço de papel, ainda no tabuleiro da balança: “Vasco, tive que sair a correr! Pf, verifica as janelas, acho que vem temporal. LY, M.” e sorriu. A pequena, fina e inclinada caligrafia de Mariana dançava-lhe perante o pensamento.

Toda a casa estava impregnada da sua presença, em cada móvel elevava-se o cheiro dos seus dedos.

Uma força invisível estrangulava-lhe o peito, obrigando Vasco a amparar-se à parede, sentindo ainda mais o frio da ausência que Mariana deixara.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

~5 ~




Abriu a porta de casa, sacudindo a água do casaco. Com gestos automáticos, atirou a chave para a pequena cesta. Ao lado, a moldura com o retrato de Mariana [como se Vasco precisasse de uma fotografia para a recordar…com exactidão milimétrica], o sorriso de Mariana, sempre o olhar de Mariana… Nela, escrevera: “ Tua…com amor, M.” Pegando-lhe com ternura, Vasco proferiu em voz alta: “A casa está vazia sem ti, Mar… a minha vida está vazia sem ti.”

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

~4~






Querida Mar,

O Sol já vai longe, levando o seu calor a outras paragens. Queria eternizá-lo, tal como a tua presença junto de mim. A tua ausência dilacera-me. Recordo, todos os instantes, o teu sorriso, o teu olhar. A forma como mordes o lábio, cada vez que ficas embaraçada ou sem palavras. Como baixas o olhar, quando precisas ganhar um instante para voltares a ti. As viagens que fazíamos, de veleiro - insistias sempre que as nossas fugas fossem de veleiro, lembras-te? “Se é para fugir, que seja como eu quero…” era o teu argumento irredutível. E eu, eu limitava-me acompanhar-te, cegamente, para onde quer que fossemos…

Não olho para ninguém como olho para ti, Mar…só a ti vejo, só a ti sinto, vives em mim, quando durmo ou acordado. As palavras parecem-me escassas e vãs, Mar, os pensamentos e as memórias atropelam-se, toldam-me o raciocínio.

Estou perdido em ti…(…)”

Mariana interrompeu a leitura e disse para si própria as frases seguintes. Quantas vezes lera aquele pedaço de papel, que os vincos denunciavam o Tempo?

Ternamente, dobrou-o com extremo cuidado, recolocando-o na caixa que era a sua morada. Voltou a encostar a testa - agora escaldante - ao vidro da janela e encontrou, desenhado na rua, o rosto de Vasco, que lhe sorria.

~3~




Mariana desdobrou cuidadosamente aquele papel tantas vezes dobrado e desdobrado. Manuseava-o com carinho, com uma ternura imensa, como se de um frágil cristal se tratasse. Sabia as palavras de cor, sentia as pausas que Vasco fez, antes de iniciar cada parágrafo. Mariana sabia o que Vasco sentiu antes de pegar na linda caneta de tinta permanente - herança do avô -e se predispôs escrever-lhe. Não, não era apenas escrever-lhe, mas sim abrir-lhe o seu coração. Podia imaginá-lo na perfeição, a passar a mão pelos cabelos, o olhar vago no infinito, a vontade que Vasco sentia, de querer abraçá-la naquele momento…

domingo, 19 de fevereiro de 2012

~2~





Vasco atravessava a rua com ligeireza. As mãos esquecidas nos bolsos, o pensamento ausente, vagueava em tempos idos, mas, contudo tão presentes. Diante de si, desenhado no chão molhado da chuva, erguia-se o rosto de Mariana - como esquecer aquele rosto, tantas vezes admirado, tantas vezes acariciado? -, como uma miragem, inundado de luz aquela tarde tão fria.

Surpreendido por uma buzina, desviou-se com agilidade de um carro. Os pensamentos consumiam-no, as lembranças torturavam-no e o rosto de Mariana, sempre o rosto de Mariana…diante dos seus olhos.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

~1~





Aproximou-se da janela da sala. A sua sala preferida, sempre inundada de sol. Hoje não. Encostou a testa ao vidro da janela, quase sentindo as bátegas de chuva no rosto. Mariana estremeceu perante o impacto causado pelo vidro frio. Ventos siberianos fustigavam as árvores da avenida. Tal como os seus pensamentos eram assolados pelas memórias. A distância aumentava a saudade, não trazia o esquecimento.



Sorriu. Por dentro. A sua alma gélida e árida ainda sabia sorrir, perante as recordações que albergava no coração.