domingo, 11 de novembro de 2012

~ 45 ~




A noite terminara sem incidentes desagradáveis: o jantar decorrera na normalidade (Vasco interrogava-se sobre a nova definição de 'normalidade'), todos pareciam felizes por estar juntos. Os jovens eram sinceros nas suas emoções, a pequena era transparente na dedicação. até Smile, deitada sobre a imensa carpete, sentia-se em paz.

Quando os pais deram a refeição por terminada, os rapazes levantaram-se de um salto (era demasiado tempo parados para a sua juventude.), Vasco levantou-se lentamente, enquanto a pequena corria ao andar superior para lavar os dentes e não perder um instante sequer longe do pai. Smile não abandonou a sala. Permaneceu. O casal encontrava-se agora a sós e a aparente cordialidade desaparecera. Vasco olhou o rosto magro e fechado - outrora tão belo e resplandecente -, e os olhos frios que o fitavam com escárnio: " Até quando esta farsa vai durar?". Vasco pensou: "já nem a farsa dura, não existe nada, nem sequer indiferença", mas respondeu: "Pouco tempo, a Pequenita está a crescer rapidamente". Virando as costas, Vasco dirigiu-se à porta da sala, seguido por Smile, encontrando a filha que se aproximara. Dirigiram-se os três para o alpendre. O balouço. O balouço albergou-os, enquanto olhavam as estrelas na noite tranquila.
Smile ao pés, ressonava ligeiramente, fazendo a pequena sorriu e encostar-se ao pai com mais força: "Quando voltas, Pai?" - sempre a mesma pergunta, mesmo sabendo que obteria sempre a mesma resposta: "Rápido, querida, rápido, tens a escola, os colegas e os estudos. Depois, contas-me tudo".

Vasco abraçou-a com força, agora no seu colo. Reconfortou, assim, o corpo frágil da criança, que se aninhou no seu peito, contemplando a noite.






sábado, 10 de novembro de 2012

~ 44 ~




De novo, Mariana sentia-se em paz, na sua casa vazia. A presença de Tomás era suficiente, a sua tranquilidade transmitia-lhe um sentimento de paz. Permitiu que as horas daquele domingo passassem devagar, saboreando instantes e, surpreendentemente, sem dúvidas. Essas, afastava-as com um ligeiro acenar de cabeça.
Mariana não se reconhecia. Evitava olhar-se ao espelho e encarar o rosto afogueado, a respiração ofegante e a mente dispersa.

Procurando relaxar, refugiou-se numa banheira de água tépida, sempre vigiada por Tomás, que não a perdia de vista.
Com esforço, preparou a semana de trabalho que se avizinhava, fez a mala como um autómato. no entanto, sorriu ao colocar alguma roupa informal e um elegante vestido de noite.
Vasco. o rosto de Vasco, o seu olhar trocista. e um sorriso brilhou no seu rosto.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

~ 43 ~




O passeio estendera-se por demasiado tempo e, apesar do banquete matinal, era tempo de voltar. O rosto infantil ensombrou-se ao avistar o enorme casarão no horizonte e Vasco sentiu um aperto na mão. e um nó na garganta.
Apenas Smile apresentava sinais de cansaço e entrou em casa a correr, em direcção à tigela de água. Com passos lentos, pai e filha entraram em casa: os rapazes estavam na sala principal, entre música e vídeo jogos. Levantaram-se de um salto para abraçar o pai e Vasco soltou por instantes a mão da pequenita e, assim, pode abraçar os três filhos.
Eram aqueles momentos, era por aqueles momentos que Vasco se mantinha.
Ou melhor, a indiferença apoderara-se e apenas ela reinava.

Um vulto na sacada da sala fez com que Vasco se afastasse dos jovens e dirigiu-se com passos firmes e semblante carregado. Beijou a face que a mulher lhe estendida e segredou: "Ao jantar, não quero fitas à frente dos miúdos. Esta noite, vamos jantar em família".


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

~ 42~




Despertou daquela letargia um com ligeiro incómodo. Tomás moveu a cabeça, olhando a com ar interrogativo. Mariana apercebeu-se que passara ...quantas horas passaram? Quantas horas passaram desde a última vez que os seus olhos viram os de Vasco?


A luminosidade matinal desenhava pequenas elipses no seu rosto: domingo estava nascendo e, no dia seguinte, iria rever Vasco - Mariana sorriu em direcção da janela, como se a luz fosse um raio de Esperança.

Erguendo-se do canapé, pegou em Tomás, que se aconchegou ao seu peito.
O corpo fofo e macio restituiu-lhe conforto e, subitamente, Mariana sentiu um apetite voraz.
Na pequena, mas feminina cozinha, colocou fatias de pão na torradeira, enquanto, Tomás bebia leite, nunca a perdendo de vista. Energicamente, fez café e, em breve, o suave aroma preencheu o recinto. Mariana aspirou profundamente: café e manhã, dois aromas associados e sempre diferentes. Colocou doce de pêssego no pão e sentou-se à mesa, servindo-se de leite e café. Comendo com vontade, Mariana sorriu, enquanto o afagava: "E agora, Tomás? E se esta maravilhosa manhã for..."
Não se atreveu a completar a frase.
Mariana sentia-se feliz. Estranha e injustificadamente feliz.







quarta-feira, 7 de novembro de 2012

~ 41~




Com Smile deitada a um canto, pai e filha partilhavam não apenas uma refeição dominical, mas momentos memoráveis, que iriam permanecer na memória de ambos durante muito tempo. A criança atropelava-se nas palavras, querendo contar todas as aventuras de uma vez. A escola, os colegas, os professores, o aniversário da prima na véspera, as brincadeiras no jardim, os jogos com Smile. Vasco ouvia-a atentamente, absorvendo a alegria e entusiasmo da petiza. Terminada a refeição, a pequena saltou da cadeira quando o pai anunciou: "E agora, um grande passeio." Smile levantou a cabeça, e a voz da criança fez-se ouvir: "E lavar os dentes?!" Atrapalhado, Vasco condescendeu: "Só desta vez vamos já passear", mas a ideia de voltar ao andar superior deixava-o particularmente incomodado. Assim, saíram os três pela ampla porta para o exterior, com acesso directo ao campo verdejante. Com a criança pela mão e Smile a ladeá-los, permitiram que a Natureza invadisse e perpetuasse aquela manhã.
Mesmo inteiramente dedicado à filha e àqueles maravilhosos momentos, de vez em quando, a imagem serena de Mariana surgia-lhe no horizonte.
Vasco sorria.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

~ 40~



Com Smile deitada a um canto, pai e filha partilhavam não apenas uma refeição dominical, mas momentos memoráveis, que iriam permanecer na memória de ambos durante muito tempo. A criança atropelava-se nas palavras, querendo contar todas as aventuras de uma vez. A escola, os colegas, os professores, o aniversário da prima na véspera, as brincadeiras no jardim, os jogos com Smile. Vasco ouvia-a atentamente, absorvendo a alegria e entusiasmo da petiza. Terminada a refeição, a pequena saltou da cadeira quando o pai anunciou: "E agora, um grande passeio." Smile levantou a cabeça, e a voz da criança fez-se ouvir: "E. lavar os dentes?!" Atrapalhado, Vasco condescendeu: "Só desta vez. vamos já passear", mas a ideia de voltar ao andar superior deixava-o particularmente incomodado. Assim, saíram os três pela ampla porta para o exterior, com acesso directo ao campo verdejante. Com a criança pela mão e Smile a ladeá-los, permitiram que a Natureza invadisse e perpetuasse aquela manhã.
Mesmo inteiramente dedicado à filha e àqueles maravilhosos momentos, de vez em quando, a imagem serena de Mariana surgia-lhe no horizonte. 
Vasco sorria.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

~ 39~




Deu acordo de si estendida no canapé, sem saber se adormecera, se viajara.
Tomás deitara-se sobre as suas mãos, transformando-se num belo e confortável regalo. Com a ponta dos dedos, Mariana afagou-me o queixo: " Diz-me tu...que encerras segredos milenares dos teus ancestrais diz-me, Tomás.... veio este homem transformar a minha vida?" 

Nos olhos oblíquos, Mariana encontrou a resposta que procurava. E manteve-se recostada, com Tomás ao colo, enquanto a penumbra invadia o atelier, mas a luz inundava o seu coração. 
A voz de Vasco ressoava na sua mente, de uma forma tão real, tão profunda e Mariana permitiu que a sua alma, tão aprisionada, voasse.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

~ 38~




Rodopiou, embalando a pequena nos seus braços, enquanto Smile também tentava entrar na roda. Suavemente, colocou-a no chão e segredou-lhe: "Shiuuuu, ainda acordamos a mamã. Ajudas-me a fazer o pequeno-almoço?" A pequena assentiu num acenar mudo, mas agarrou-lhe a mão com força. Não tencionava largá-lo, agora que chegara, finalmente, o tinha perto de novo.
Smile abriu caminho, com a enorme cauda a abanar. Também ela estava feliz, e "sorria": voltava a haver vida naquela casa.
No piso inferior, entraram na cozinha, que se mantinha arrumada como na véspera. "Esta cozinha está morta" - pensou Vasco. Aquela cozinha, outrora palco de tanta azáfama, tantas pessoas numa roda-viva, podia ouvir os ruídos, sentir o cheiro dos alimentos, preparados com amor e carinho. 


Passando a mão pelos cabelos, afastou esses pensamentos - apenas agora dava conta como eles o torturavam.
"E nós. vamos fazer um banquete!", anunciou à pequena, que de imediato bateu palmas - não era a ideia de comida que a animava, era a presença do pai.
Vasco encheu a tigela de ração, que colocou ao alcance de Smile e virou-se para os armários. "Hum. que temos por aqui?!" E foi retirando os alimentos que considerou importantes, completando a grande mesa de apoio com outros que retirou do frigorifico. Enchendo um copo com leite, que colocou nas mãos da criança, fez-se ouvir:" Isto é só o começo". A pequena engoliu de um trago e, pousando o copo vazio, deu-se o início de uma animada e primaveril refeição domingueira.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

~ 37 ~




Vasco adormecera, com Smile aninhada aos seus pés. Acordou na madrugada de domingo, por instantes sem saber onde estava.
Reconhecendo o acolhedor espaço , afagou Smile:
- " E nós… parece que dormimos aqui…"
Dirigiu-se ao banho, passando pela porta entreaberta, revelando-se um vulto na cama. Aquele corpo, aquela pessoa, já em nada lhe interessava. Seguiu com indiferença e a água tépida varreu-lhe o cansaço e os vestígios de uma noite mal dormida.
Limpou com uma toalha a fina película de vapor que cobria o espelho, e nele deslumbrou o rosto de Mariana. Tão enigmático quanto ela. Vasco sorriu-lhe, com alegria e ternura. Já totalmente desperto, lembrou-se que no dia seguinte voltaria a encontrá-la. Sentiu a garganta apertada por uma força estranha e invisível.
Terminara de se barbear quando ouviu passos secos, acompanhados de uma vozinha infantil:
- "Paiiiiiiiiiiiiiiiiiiii ..."
A pequenita cruzava o corredor em sua direcção, ladeada por Smile. Baixando-se para a levantar, abraçou com força o corpinho frágil que pulava de satisfação. Apertou-a contra o peito, enquanto a criança despejava um chorrilho de palavras em todas as direcções.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

~ 36 ~



Continuando a arrumar, o rosto de Vasco desenhava-se em cada objecto.
O seu sorriso. Os fios de cabelo despenteados. Num impulso, correu para o atelier e com rápidos mas precisos traços, o esboço nasceu sob os seus olhos. Eis o retrato de Vasco e, agora, Mariana ouvia, com nitidez, a sua voz, as suas palavras.
…Já não estava sozinha.
Aproximou a folha de papel a Tomás, que a cheirou e dirigiu-lhe:
"Vês? - e admirando , acrescentou: É bonito. é um rapaz bonito. Consegues também ouvi-lo, Tomás?"
E a resposta leu-a nos olhos oblíquos que o lindo gato ergueu.

Instalando-se, Vasco ligou o écran enquanto acariciava a cabeça de Smile e levava a cerveja à boca. Procurou concentrar-se, mas em vão.
Não se sentia bem. Algo em si reclamava. Que lhe atrofiava os músculos e, sobretudo, o cérebro. Ou não. Reclinou-se na poltrona e interrogou-se, passando as mãos pelo cabelo:
"Mas que raio. que diabo, pareço um miúdo!"
E esta descoberta fê-lo soltar uma sonora gargalhada que inundou o aposento, a primeira desde que vira Mariana afastar-se no parque de estacionamento.

terça-feira, 17 de julho de 2012

~ 35 ~




Na cozinha, Vasco olhou em redor, como desconhecendo aquelas paredes, aparelhos e utensílios.Smile deitou-se debaixo da mesa, acompanhando-o com o olhar. Abriu e fechou portas, nada encontrou naquele espaço imaculadamente limpo e arrumado. Demasiado limpo. Demasiado arrumado.
Como se ninguém contasse com a sua chegada. Só Smile. Apenas Smile, a magnífica Smile. e agora, Mariana - Vasco sorriu no vazio perante este pensamento -, que o acompanhava, talvez sem saber.
Do frigorífico, serviu-se dos elementos necessários para uma sandwich fria. Retirou também, pensativo, uma cerveja, que rodou pelo gargalo.
Dirigiu-se, de novo, para o escritório minimalista. Smile seguiu os seus passos como uma sombra e expressão interrogativa, quanto eram os pensamentos do dono.

Enquanto desfazia a mala, Mariana sorria. Olhos tão brilhantes como os de Tomás, que a observava de cima da cómoda antiga. A casa vazia não a surpreendia. Até preferia, concluiu a contrariada Assim, permitia-lhe refugiar-se no silêncio, deixar falar os seus pensamentos. Continuava a sentir-se assustada, mas feliz. Nem a tranquilidade da casa a sossegava.. Uma estranha felicidade invadia-a, impelia-a sem saber para onde. Sentia uma força adormecida, que estava prestes a (re)nascer e, apesar de agitada, Mariana sentia-se em paz.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

~ 34 ~


Para lá do portão, conduziu devagar na estrada estreita que serpenteava entre o jardim. Vasco pretendia saborear a calma letárgica que sentia, antes de entrar em casa.

Foi recebido, com alegria, por Smile. A imponente labrador-negra saltitava à volta do carro, aguardando-o com satisfação. Vasco acariciou-lhe as orelhas e recordou, com saudade, a razão do nome: Smile sorria-lhe, ostentando dentes perfeitos, impedindo-o de se mover.
A custo, retirou os seus pertences e entrou na bela casa, de construção sólida e reconfortante. Vasco necessitava da solidez daquelas paredes.

Seguido por Smile, dirigiu-se ao [seu] escritório, constatando que a casa estava vazia: os gémeos tinham saído com amigos e a pequenina acompanhara a mãe, num aniversário. Recordou-se sem emoção, ao ler o pequeno papel, preenchido de letras frias e impessoais, a total ausência da família. Uma súbita vontade de abraçar os filhos apoderou-se de Vasco, que, devolvendo o papel ao local onde se encontrava, dirigiu-se para a cozinha, acompanhado de Smile.

domingo, 15 de julho de 2012

~ 33 ~



Desconhece quanto tempo ficou naquela sala. A penumbra invadia o espaço, invasora mas cúmplice. As horas passaram sem se aperceber, perdido nos momentos que passara na companhia de Mariana.

Estava a tornar-se uma constante. Sentia a sua presença, quase física, quase táctil, e, em contrapartida, sentia a sua falta. Uma falta atroz e [quase] torturante.

Contrariado, abandonou o edifício em direcção a casa, perdido em emoções tão contraditórias e surpreendentes.

sábado, 14 de julho de 2012

~ 32 ~




Dirigiu-se à copa e do frigorífico retirou uma cerveja sem álcool. Sentia sede, causada [talvez] pela viagem, justificou-se interiormente. Acercou-se de uma janela e observou a cidade, naquele quase fim de tarde primaveril. Imaginou Mariana. Onde estaria? Teria ido para casa? Quem teria à sua espera? Viu Mariana a abraçar um homem sem rosto e sentiu um aperto no peito. Com um esgar, atirou o resto da cerveja no lava-louças da copa, tentando expulsar o amargo que aquela visão lhe causava. Afastou-se da janela: via o cabelo de Mariana esvoaçar diante do seu rosto.
Seria possível que sentisse saudades? De uma estranha? Sacudiu a cabeça, rejeitando a ideia: Mariana [já] não era uma pessoa estranha.
Uma onda de dor varreu-lhe o corpo inteiro e Vasco soube, naquele exacto momento, que Mariana estaria ligada a ele. Para sempre.



sexta-feira, 13 de julho de 2012

~31 ~




A custo, Vasco encaminhou-se para o carro. Eufórico, mas, simultaneamente, [quase] triste. Feliz, mas contido. Sentia-se antagónico, nada habitual na sua personalidade naturalmente segura e optimista. Reviu-se no vidro do carro, ao colocar a café: reflectia um miúdo. De cabelo espetado e calções curtos. Só o olhar era o mesmo. O olhar 'líquido', atrevido, de petiz. O olhar da imensidão de terras de África, perdidas entre desertos. A mesma expressão que o acompanhara anos fora e que tantas portas lhe facilitara, entre negócios e mulheres. Seria, agora, uma barreira?
Mariana parecia ser imune a esse poder. A sua atitude reservada era superior a qualquer poder ou intimidação.
Vasco dirigiu-se ao escritório, que estava deserto. Sendo sábado, as crianças estariam ocupadas em actividades diversas e não sentia vontade de enfrentar a casa vazia. Não quando a presença de Mariana era tão intensa.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

~ 30 ~



Metendo a chave à porta, Mariana colocou a bagagem no hall, o casaco e a pasta num canapé. Tomás descia a imensa escadaria de madeira antiga, saltou, leve, para o corrimão, cheirando-a. Mariana pegou-lhe ao colo, murmurando palavras de afecto, carinho e saudade. 

O maravilhoso persa-azul não terminava de a cheirar, enquanto Mariana lhe afagava o pêlo macio, tão suave quanto os seus pensamentos. Tomás encarou-a com os seus olhos inquisidores e oblíquos. A elevada percepção felina compreendeu de imediato uma mudança, algo que Mariana levaria tempo a compreender e ainda mais a aceitar.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

~ 29 ~




Sem saber como, Mariana iniciou a marcha de regresso a casa. Casa. Um conjunto de 4 paredes revestia alguns bens de estimação. E Tomás.
Sorriu perante a saudade que sentia e constatou que ainda não tinha deixado de sorrir. As feições de Vasco povoavam-lhe a mente, transformando-a numa desconhecida diante de si: sem palavras, Mariana conduziu como um autómato.
Mariana receava e desejava que fosse [já] segunda-feira.
Sentia-se alegre e infantil.
Sentia-se viva.

terça-feira, 10 de julho de 2012

~28 ~




Ficou preso àquele vulto, cada vez mais pequeno. Vasco observava a figura de Mariana desaparecer no imenso estacionamento e sentiu um nó na garganta. Ficou imóvel. Sentia falta de ar.
Quem era, afinal, Mariana? Cada vez estava mais convicto que não era [apenas] uma mulher muito interessante: havia nela algo mais, algo mais profundo que o mistério encarcerado no seu olhar. Algo mais denso do que a sua boca calava.
Em breve, não interessaria quem era Mariana, mas sim quem podia vir a ser.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

~27~




Mariana arrumou a bagagem, resistindo à súbita vontade de olhar Vasco uma última vez. Entrando, sentou-se e reclinou a cabeça no encosto, pressionando as têmporas latejantes. O espelho-retrovisor devolveu-lhe o seu próprio rosto. Luzidio. Ofegante.


Rejuvenescida. Tinha um brilho [quase] desconhecido.
Sorriu para a sua imagem, sorriu para a sua alma. Sentia-se resplandecente.
O culpado... era Vasco.



sexta-feira, 6 de abril de 2012

~26~



Mariana deixou-se dormitar no velho sofá, embalada pela carta de Vasco. Não só a sabia de cor, como conseguia visualizar cada segundo em que foi escrita: as pausas, a respiração, a forma de pegar na caneta. Registara na memória todos os gestos de Vasco e ansiava por regressar, voltar para ele e para Tomás.

Vasco cedeu o lugar-janela a Mariana e acomodou-se no de coxia, certificando-se de que ela estivesse bem instalada. O seu cuidado era natural, nada de exageros e transmitia uma estranha segurança a Mariana, que se sentia bem [quase feliz] a seu lado. Vasco continuava sendo o mesmo de véspera: sabia manter uma agradável conversa e, pouco a pouco, Mariana respondia com mais do que monossílabos, revelando um inteligente sentido de humor. Vasco sentia-se feliz pelo progresso, mas manteve-se constante, temendo a reacção de Mariana.

Após a ligeira refeição, em que ambos apenas tomaram chá, Vasco consultou discretamente o relógio, constatando que estava breve a hora da separação. Este gesto não passou despercebido a Mariana, deduzindo que Vasco tivesse compromisso ou alguém à espera… voltou-se para admirar as nuvens através da pequena janela, como que regressando à realidade, em sintonia com a descida do avião. Vasco não fez nenhum comentário sobre o novo semblante ao seu lado.

A aterragem realizou-se sem qualquer dificuldade, marcando alguma tristeza em ambos, que dissimularam. Na manga, entre outros passageiros e bagagem, o ombro de Mariana quase tocava no braço de Vasco, ambos em silêncio.
A saída do aeroporto, Vasco arriscou:
- Tens alguém á tua espera? Precisas de boleia? Queres um táxi?
Sentiu-se um adolescente inseguro, temendo a resposta:
- Não, obrigada, não preciso de nada. Tenho o carro ali. – e Mariana indicou o estacionamento distante.
Vasco prontificou-se a acompanhá-la, mas Mariana rejeitou com firmeza e ele considerou que o melhor seria não insistir:
- Bom resto de fim de semana… e até segunda-feira – tocou-lhe no ombro do casaco, apertando-o levemente quando Mariana respondeu, sorrindo:
- Igualmente… e obrigada pela companhia.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

~25~



Vasco fechou os olhos , continuando a ver a foto de ambos, tão sorridentes. Tomás, cuja atenção estava concentrada na imagem de Mariana, centrou-se agora nos olhos fechados de Vasco, como que procurando ler os seus pensamentos. Vasco afundou o rosto na almofada e, por um leve instante, a angústia da ausência feriu-lhe o peito, em pleno. Todas as memórias estavam marcadas a ferro e fogo, os momentos vividos eram o seu bálsamo, as recordações funcionavam como oxigénio.

Acariciou a cabeça de Tomás, que, por um segundo, fechou os olhos, sentido como nunca a falta de Mariana, dos serões passados ao seu colo, acariciando-lhe o pêlo, enquanto a sua voz melodiosa envolvia a sala, em conversas partilhadas. Estes serões eram o reino de Vasco, Mariana e Tomás.

Envolto em memórias, recordou aquela viagem “juntos”, sob o olhar algo
intrigado de outros passageiros, alguns dos quais já tinham manifestado surpresa ao ver Mariana e Vasco tomarem o pequeno-almoço no hotel, envoltos em à-vontade e alguma [já] cumplicidade. Tal a colega, também a tripulação, que não era a habitual, presumiu que eram um casal que regressava a casa naquela manhã de sábado. Vasco escondeu um sorriso e Mariana mostrou-se desinteressada “que pensassem o que quisessem, ora”. Vasco aprendia a “lê-la”, não através das poucas palavras que proferia, mas pela expressividade do olhar, pela postura corporal… pela autenticidade.
Vasco recordou, num flash, o dia, meses após este dia, em que perguntou a Mariana o porquê de tão poucas palavras, que respondeu pausadamente: “A minha voz é uma arma profissional. Dependo dela. Fora dessa área, uso-a com moderação e… nem sempre tenho nada de importante para dizer”, soltando uma gargalhada. Vasco apertou-a nos seus braços, beijou-lhe a fronte e murmurou: “Tu és tão especial”.

domingo, 1 de abril de 2012

~24~



Após a saída do hotel, todos os passageiros antes retidos foram conduzidos ao aeroporto, onde as condições permitiam agora o almejado regresso. Vasco estranhou que Mariana não fizesse nem recebesse nenhum telefone particular, dada a situação de atraso em que se encontravam. Mariana, absorta na presença acolhedora de Vasco, não se lembro desse detalhe.

Fazendo o check in juntos, a hospedeira considerou-os um casal, marcando os lugares juntos. Com os talões de embarque na mão, Vasco olhou nos olhos de Mariana e afirmou, trocista:

- Está visto que vais aturar-me mais um tempinho.

A resposta foi um sorriso esclarecedor e dirigiram-se juntos para a porta de embarque, onde tantas vezes Vasco tinha, de longe, observado o comportamento discreto daquela jovem rapariga que agora caminhava ao seu lado.

sábado, 31 de março de 2012

~23~


Acordou, sentindo leve e tranquila, numa paz interior imensa. Identificou o local onde estava e sorriu no escuro do quarto, recordando a noite anterior. Sem pressas, levantou-se, consultou o relógio e arranjou-se com cuidado, procurando não deixar nenhuma peça. No elevador, surpreendeu-se com o seu aspecto: o rosto reflectia o estado interior, Mariana ostentava uma luz própria, revelando um brilho, escondido até então, em cantos recônditos do seu espírito.

Dirigindo-se ao espaço indicado, encontrou Vasco, que mal a avistou à entrada, prontamente se levantou, acolhendo a sua presença em silêncio. Mariana dirigiu-se com um leve sorriso, entre a felicidade e a timidez, mas o sorriso e o olhar de Vasco inspiravam-lhe confiança, desconhecida e inexplicável. Servindo-a de café e leite, Vasco interessou-se pelo seu descanso, elogiou-lhe a aparência saudável e agradeceu-lhe a agradável companhia. Tudo num tom natural, sem bajulação ou exagero. Mariana apreciou a naturalidade, contudo não se manifestou, limitando-se a sorrir, deixando que o seu olhar falasse por ela. Por agora, para Vasco, era suficiente: sem saber como, compreendia Mariana e o seu silêncio, cujo motivo desconhecia...mas saberia esperar.

Degustaram a leve refeição numa intimidade acolhedora, elogiando a qualidade prestada. Vasco observava discretamente a satisfação de Mariana a saborear os alimentos, tal como tinha ocorrido no jantar de véspera.

sexta-feira, 30 de março de 2012

~22~



Vasco ficou imóvel, vendo Mariana desaparecer da sua vista, mas não dos seus sentidos. Saboreou, com um sorriso, as últimas horas na sua companhia, recordando pequenos detalhes, como a gradual descontracção, a intensidade com que ouvia as suas palavras. Mariana não era uma conquista. Naquele exacto instante, Vasco aceitou, como uma facto, que iriam ser cruciais um para o outro. Vasco desconhecia quando e como, mas, sem margem de dúvidas, decidiu que iria pertencer ao mundo de Mariana.

quinta-feira, 29 de março de 2012

~21~



A porta abriu-se, mas Mariana sentia-se sem acção, estupefacta com os recentes acontecimentos. Vasco… Vasco era um estranho. Mecanicamente, saiu do elevador, arrastando o a bagagem, localizou a habitação, abriu a porta e ao colocar o cartão, as luzes acenderam-se. Deparou-se com um espelho de corpo-inteiro, que reflectia uma pessoa desconhecida. A custo, pousou as peças que a acompanhavam, procurando afastar da memória os momentos recentes, incluindo a sua (nova) própria imagem.

Alheada de tudo, preparou-se para um banho, deixando escorrer a água tépida pelo corpo, desejando afastar todos os vestígios desse dia.

Lentamente, sentiu o cansaço abandoná-la e surgir um relaxamento que há muito tinha desaparecido da sua vida. Entregou-se ao prazer da água, enquanto a voz e a presença de Vasco vigoravam na sua mente.

Sozinha, sorriu, sob a luz impessoal daquele quarto de hotel.

sábado, 24 de março de 2012

~20~



À entrada do hotel, Mariana sentiu um ligeiro arrepio. Tomou consciência da presença física de Vasco e corou, reconhecendo o quanto a sua companhia lhe agradara. Vasco encaminhou-a para a recepção, onde fizeram o check in e receberam a bagagem, horas antes depositada.

Com extrema naturalidade, Vasco conduziu-a ao átrio dos elevadores, fazendo-a entrar no primeiro que chegara, colocou-lhe o troley, carregou no botão correspondente ao piso do quarto de Mariana e sorriu:

- Chamo-me Vasco.

- Mariana.

Enquanto a porta se fechava.

sexta-feira, 23 de março de 2012

~19~



Terminada a refeição, apesar do frio que se fazia sentir, Vasco propôs um pequeno passeio ao quarteirão. Caminharam de novo lado a lado na pequena rua que circundava o hotel, Vasco salientava a escuridão da noite, contrastando com os pequenos farrapos de neve. Mariana escutava-o, mantendo as mãos enluvadas nas algibeiras do sobretudo, e, de vez em quando olhava o céu e de seguida para o rosto de Vasco, onde brilhavam dentes muito brancos e dançava aquele sorriso… o sorriso de Vasco.

quinta-feira, 22 de março de 2012

~18~


Mariana jantou com grande satisfação. A conversa natural de Vasco, descrevendo lugares de que nunca tinha ouvido falar, a emoção e vivacidade das suas palavras acabaram por embalá-la e deixou-se transportar para lugares mágicos. Sem dar por isso, abandonou a postura rígida, correctamente sentada e de antebraços apoiados na mesa, encontrando-se agora bem mais relaxada, absorvendo cada sílaba.

Vasco sentiu-a descontrair e prosseguiu, sem fazer perguntas, sem pausas indiscretas. Queria, sobretudo, que Mariana fosse verdadeira, queria vê-la, senti-la como ela era… Intrigava-o o seu silêncio, Mariana parecia decidida a não querer impressioná-lo, a não querer dar-se a conhecer. Limitava-se a escutá-lo, limitavam-se a estar. Para Vasco, era, por agora, suficiente.

quarta-feira, 21 de março de 2012

~17~


Tomás saltou para a cama, procurando por Vasco, que lhe acariciou o pêlo sedoso. Virando-se, observou a foto à cabeceira, que retratava ambos num dia de praia. Recordou aquele instante da fotografia, o sorriso espontâneo de Mariana, o cabelo a esvoaçar, o brilho de felicidade no olhar.

- É tão especial, Tomás. Tão especial para nós.

Em resposta, Tomás olhou fixamente a imagem, reflectindo-a nos olhos oblíquos e Vasco viu-se espelhado, abraçado a Mariana. Naquele instante, sentiu com intensidade aquele abraço sob o calor do sol… O sol da sua vida.

terça-feira, 20 de março de 2012

~16~


Vasco iniciou a conversa; em tom pausado, contou como descobrira aquele restaurante. Falou da cidade, dos edifícios, da arquitectura tão característica. Mariana escutava-o, assentindo de vez em quando, sentia que Vasco lhe dava espaço para falar. Falaria a seu tempo. Gostava do tom de voz, confiante e seguro, analisava o olhar e sorriso trocistas, mas respeitosos. Vasco não disfarçava o interesse, mas sabia manter a distância que Mariana precisava. Vasco entendeu Mariana desde início: não podia ser inoportuno, limitava-se a ser natural, na sua forma de ser, de estar.

Sem dar conta, Mariana proferiu pequenas frases, complementando o discurso de Vasco, que se sentiu feliz por estas intervenções.

Sentiam uma mútua empatia e algum deslumbramento.

segunda-feira, 19 de março de 2012

~15~


Vasco fez o pedido, sem consultar Mariana. Ao invés de sentir-se ofendida, apreciou o gesto: considerou-o carinhoso, como que a evitar de fazer escolhas. Ainda na presença do empregado, Vasco dirigiu-lhe um olhar interrogativo, buscando a sua concordância. Mariana assentiu com um ligeiro acenar e, pela primeira vez, esboçou um sorriso dirigido a Vasco.

Ficou a admirar a transformação, enquanto o empregado se afastava discretamente: o rosto, agora iluminado pelo sorriso e pela luz da vela que os testemunhava , conduziu-o a outra dimensão. Vasco não conseguia despregar o olhar daquele rosto, já tão querido. Sentindo-se constrangida, Mariana baixou os olhos, mantendo o sorriso. Uma estranha sensação de paz invadiu-a, todo o cansaço se desvanecia e a presença calorosa de Vasco era reconfortante.

domingo, 18 de março de 2012

~14~


O espaço era, de facto, muito agradável. Estilo tasca-chique, muito típico e informal. Prevaleciam a madeira escura e a iluminação suave, resultando num ambiente intimista, tão do agrado de Mariana.

A sala estava quase deserta devido ao avançado da hora. Foram conduzidos a uma mesa pequena e Vasco ajudou Mariana a instalar-se, sempre com um sorriso, aquele sorriso tão característico. Ambos estavam cientes do silêncio, aconchegante, que se mantinha entre ambos - não tinham proferido nenhuma palavra.

Mariana mergulhou o rosto na ementa, resistindo à tentação de encarar Vasco, sentado à sua frente. Encontrava-se ainda totalmente surpreendida por ter aceite o convite de um estranho.

sábado, 17 de março de 2012

~13~



Sem esperar resposta, Vasco encarregou-se da bagagem, entregando-a na recepção, onde informou que iriam jantar e fariam o check in mais tarde.

Na rua, Mariana estupefacta, assistia a tudo, incapaz de uma reacção.

- Vamos. Ali à frente há um restaurante simpático.

Assumia descontracção e tentava transmitir-lhe alguma segurança. Mariana tentou titubear uma recusa, mas faltou-lhe a voz. Por outro lado, o ar natural de Vasco transmitia-lhe alguma confiança. O facto de avistar o restaurante deu-lhe algum ânimo e Mariana caminhou os curtos metros ao lado de Vasco.

sexta-feira, 16 de março de 2012

~12~


Era um fim de tarde qualquer. Parecia, não fosse o espaço quase deserto e a pista coberta de neve. A súbita alteração levou ao encerramento do espaço aéreo. Os passageiros seriam conduzidos para um hotel, de acordo com a informação prestada pela companhia.

Entre murmúrios de contestação, Mariana encaminhou-se para o autocarro, avaliando o incómodo. Percurso breve e rapidamente dirigiu-se ao hotel, quando escutou:

- Vem jantar comigo.

quinta-feira, 15 de março de 2012

~10~



O grupo era, basicamente, sempre o mesmo: algumas pessoas viajavam em grupo de 3 ou 4, outras individualmente. Poucas entabulavam diálogo, nem esboçavam um sorriso: eram “estranhos”, embarcados no mesmo espaço que cruzava os céus.

Ao chegarem ao destino, encaminhavam-se rapidamente para as viaturas que as esperavam ou para a fila de táxis. Era um “até sexta feira”, silencioso e inconsciente. Numa dessas manhãs, Mariana sentiu a presença de Vasco, caminhando a seu lado. Ignorou o olhar trocista, divertido até, lançado por Vasco e apressou o passo.
Era o início de Primavera, o sol inundava a cidade e Mariana quase sorria ao vento leve que lhe assolava o rosto, limpando vestígios de cansaço. Concentrou-se na tarefa que a esperava e, rapidamente, esqueceu o olhar de Vasco.

~11~



Aproximou-se do quarto e deitou-se sobre a cama. De braços cruzados atrás da nuca, Vasco sorria no escuro. Recordava a primeira vez que vira Mariana. Quase escondida, fazendo tudo por passar incógnita. Esta atitude despertou-lhe a curiosidade: Mariana era o inverso de todas as mulheres que tinha visto em quase todos os aeroportos. Distante e discreta.

A Vasco não passara despercebidos os olhares que lhe eram dirigidos e procurou ler, naquele rosto semi-oculto por cabelos lisos, os olhos de Mariana.

sábado, 10 de março de 2012

~9~




O vento satisfez-lhe a vontade e transportou Mariana para “o nosso tempo”, conforme tinha proferido. Abandonou o corpo no canapé, permitindo que a mente voasse através do temporal que açoitava a janela.

A primeira vez que viu Vasco. Que viu não, que o sentiu…naquele aeroporto internacional, de cadeiras duras e cinzentas, tomadas eléctricas para abastecer portáteis e outros instrumentos de trabalho. A sala de embarque preenchida de fatos escuros, camisas brancas e gravatas cinzentas ou azuis.

Mariana procurava sempre um local afastado, onde pudesse encostar o troiley e pousar a pasta. Afastado suficiente para não despertar atenção no mundo masculino e suficientemente longe de outras mulheres, acompanhadas de famílias, que a olhavam com desconfiança, considerando-a uma ameaça. Mariana estava habituada com ambas as situações e tentava geri-las da melhor forma que podia, mantendo-se discreta e afastada até à abertura da porta de embarque. Isso não impedia que despoletasse olhares, sendo de curiosidade masculina ou de malícia feminina, não obstante a aliança, grossa e brilhante, que habitava no anelar esquerdo, acompanhada do magnífico solitário que celebrara o noivado.

A espera, por vezes longa, permitia-lhe esquematizar resumos, anotar ideias em pequenas notas, sumariar relatórios, preparar novas apresentações, enfim, tudo aquilo que era o seu mundo dedicado à carreira profissional que escolhera.

Mariana e Vasco pertenciam ao imigrantes intelectuais, ausentes toda a semana: o primeiro voo à segunda-feira, pelas 07:40h e o último de sexta, pelas 20:05h, de regresso a Lisboa.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

~8~



Inspirou profundamente e exalou o ar com lentidão, recuperando assim da vertigem. A custo, Vasco encaminhou-se para a bancada. De imediato, Tomás, que observara, com os seus olhos oblíquos e misteriosos, a sua entrada, saltou e, aproximando-se de Vasco, soltou um miado quase inaudível. “Queres comer, não é?”, enquanto lhe afagava o pêlo suave, liso de macio do lindo persa-azul de Mariana. “Sentes tanto a falta dela…” Tomás mirou-o com o seu olhar sempre interrogativo e debruçou-se perante a tigela. Observando-o com satisfação, as mãos de Vasco depararam-se com o livro que Mariana deixara…ainda estava no mesmo sítio. Abriu a página marcada, retirou o marcador de madeira talhado à mão e, sob os seus olhos, as letras dançavam:


ME ENCANTE

Me encante da maneira que você quiser, como você souber.
Me encante, para que eu possa me dar...

Me encante nos mínimos detalhes.
Saiba me sorrir: aquele sorriso malicioso,
Gostoso, inocente e carente.

Me encante com suas mãos,
Gesticule quando for preciso.
Me toque, quero correr esse risco.

Me acarinhe se quiser...
Vou fingir que não entendo,
Que nem queria esse momento.

Me encante com seus olhos...
Me olhe profundo, mas só por um segundo.
Depois desvie o seu olhar.
Como se o meu olhar,
Não tivesse conseguido te encantar...

E então, volte a me fitar.
Tão profundamente, que eu fique perdido.
Sem saber o que falar...

Me encante com suas palavras...
Me fale dos seus sonhos, dos seus prazeres.
Me conte segredos, sem medos,
E depois me diga o quanto te encantei.

Me encante com serenidade...
Mas não se esqueça também,
Que tem que ser com simplicidade,
Não pode haver maldade.

Me encante com uma certa calma,
Sem pressa. Tente entender a minha alma.

Me encante como você fez com o seu primeiro namorado...
Sem subterfúgios, sem cálculos, sem dúvidas, com certeza.

Me encante na calada da madrugada,
Na luz do sol ou embaixo da chuva....

Me encante sem dizer nada, ou até dizendo tudo.
Sorrindo ou chorando. Triste ou alegre...
Mas, me encante de verdade, com vontade...

Que depois, eu te confesso que me apaixonei,
E prometo te encantar por todos os dias...
Pelo resto das nossas vidas!!!

Neruda, um dos predilectos de Mariana. Recordou com serões, passados à lareira, em que a voz melodiosa de Mariana enchia a sala, com as palavras de Pablo Neruda.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

~7~


Recostou-se no canapé, percorrendo com os dedos finos o desenho estampado no tecido brocado. Mariana observava a que caia na rua, vendo as gotas desenharem no vido da janela: “ Sinto a tua falta” e, por detrás, o rosto de Vasco, que lhe sorria.

O temporal desdobrava-se em vento, que lhe despenteava os pensamentos, transportando-a para longe: “Leva-me para o nosso tempo”, apelou.

~6~



Entrou na cozinha, atirando o sobretudo molhado para cima de uma cadeira. Os olhos fugiram-lhe para o pequeno pedaço de papel, ainda no tabuleiro da balança: “Vasco, tive que sair a correr! Pf, verifica as janelas, acho que vem temporal. LY, M.” e sorriu. A pequena, fina e inclinada caligrafia de Mariana dançava-lhe perante o pensamento.

Toda a casa estava impregnada da sua presença, em cada móvel elevava-se o cheiro dos seus dedos.

Uma força invisível estrangulava-lhe o peito, obrigando Vasco a amparar-se à parede, sentindo ainda mais o frio da ausência que Mariana deixara.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

~5 ~




Abriu a porta de casa, sacudindo a água do casaco. Com gestos automáticos, atirou a chave para a pequena cesta. Ao lado, a moldura com o retrato de Mariana [como se Vasco precisasse de uma fotografia para a recordar…com exactidão milimétrica], o sorriso de Mariana, sempre o olhar de Mariana… Nela, escrevera: “ Tua…com amor, M.” Pegando-lhe com ternura, Vasco proferiu em voz alta: “A casa está vazia sem ti, Mar… a minha vida está vazia sem ti.”

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

~4~






Querida Mar,

O Sol já vai longe, levando o seu calor a outras paragens. Queria eternizá-lo, tal como a tua presença junto de mim. A tua ausência dilacera-me. Recordo, todos os instantes, o teu sorriso, o teu olhar. A forma como mordes o lábio, cada vez que ficas embaraçada ou sem palavras. Como baixas o olhar, quando precisas ganhar um instante para voltares a ti. As viagens que fazíamos, de veleiro - insistias sempre que as nossas fugas fossem de veleiro, lembras-te? “Se é para fugir, que seja como eu quero…” era o teu argumento irredutível. E eu, eu limitava-me acompanhar-te, cegamente, para onde quer que fossemos…

Não olho para ninguém como olho para ti, Mar…só a ti vejo, só a ti sinto, vives em mim, quando durmo ou acordado. As palavras parecem-me escassas e vãs, Mar, os pensamentos e as memórias atropelam-se, toldam-me o raciocínio.

Estou perdido em ti…(…)”

Mariana interrompeu a leitura e disse para si própria as frases seguintes. Quantas vezes lera aquele pedaço de papel, que os vincos denunciavam o Tempo?

Ternamente, dobrou-o com extremo cuidado, recolocando-o na caixa que era a sua morada. Voltou a encostar a testa - agora escaldante - ao vidro da janela e encontrou, desenhado na rua, o rosto de Vasco, que lhe sorria.

~3~




Mariana desdobrou cuidadosamente aquele papel tantas vezes dobrado e desdobrado. Manuseava-o com carinho, com uma ternura imensa, como se de um frágil cristal se tratasse. Sabia as palavras de cor, sentia as pausas que Vasco fez, antes de iniciar cada parágrafo. Mariana sabia o que Vasco sentiu antes de pegar na linda caneta de tinta permanente - herança do avô -e se predispôs escrever-lhe. Não, não era apenas escrever-lhe, mas sim abrir-lhe o seu coração. Podia imaginá-lo na perfeição, a passar a mão pelos cabelos, o olhar vago no infinito, a vontade que Vasco sentia, de querer abraçá-la naquele momento…

domingo, 19 de fevereiro de 2012

~2~





Vasco atravessava a rua com ligeireza. As mãos esquecidas nos bolsos, o pensamento ausente, vagueava em tempos idos, mas, contudo tão presentes. Diante de si, desenhado no chão molhado da chuva, erguia-se o rosto de Mariana - como esquecer aquele rosto, tantas vezes admirado, tantas vezes acariciado? -, como uma miragem, inundado de luz aquela tarde tão fria.

Surpreendido por uma buzina, desviou-se com agilidade de um carro. Os pensamentos consumiam-no, as lembranças torturavam-no e o rosto de Mariana, sempre o rosto de Mariana…diante dos seus olhos.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

~1~





Aproximou-se da janela da sala. A sua sala preferida, sempre inundada de sol. Hoje não. Encostou a testa ao vidro da janela, quase sentindo as bátegas de chuva no rosto. Mariana estremeceu perante o impacto causado pelo vidro frio. Ventos siberianos fustigavam as árvores da avenida. Tal como os seus pensamentos eram assolados pelas memórias. A distância aumentava a saudade, não trazia o esquecimento.



Sorriu. Por dentro. A sua alma gélida e árida ainda sabia sorrir, perante as recordações que albergava no coração.