sábado, 31 de março de 2012

~23~


Acordou, sentindo leve e tranquila, numa paz interior imensa. Identificou o local onde estava e sorriu no escuro do quarto, recordando a noite anterior. Sem pressas, levantou-se, consultou o relógio e arranjou-se com cuidado, procurando não deixar nenhuma peça. No elevador, surpreendeu-se com o seu aspecto: o rosto reflectia o estado interior, Mariana ostentava uma luz própria, revelando um brilho, escondido até então, em cantos recônditos do seu espírito.

Dirigindo-se ao espaço indicado, encontrou Vasco, que mal a avistou à entrada, prontamente se levantou, acolhendo a sua presença em silêncio. Mariana dirigiu-se com um leve sorriso, entre a felicidade e a timidez, mas o sorriso e o olhar de Vasco inspiravam-lhe confiança, desconhecida e inexplicável. Servindo-a de café e leite, Vasco interessou-se pelo seu descanso, elogiou-lhe a aparência saudável e agradeceu-lhe a agradável companhia. Tudo num tom natural, sem bajulação ou exagero. Mariana apreciou a naturalidade, contudo não se manifestou, limitando-se a sorrir, deixando que o seu olhar falasse por ela. Por agora, para Vasco, era suficiente: sem saber como, compreendia Mariana e o seu silêncio, cujo motivo desconhecia...mas saberia esperar.

Degustaram a leve refeição numa intimidade acolhedora, elogiando a qualidade prestada. Vasco observava discretamente a satisfação de Mariana a saborear os alimentos, tal como tinha ocorrido no jantar de véspera.

sexta-feira, 30 de março de 2012

~22~



Vasco ficou imóvel, vendo Mariana desaparecer da sua vista, mas não dos seus sentidos. Saboreou, com um sorriso, as últimas horas na sua companhia, recordando pequenos detalhes, como a gradual descontracção, a intensidade com que ouvia as suas palavras. Mariana não era uma conquista. Naquele exacto instante, Vasco aceitou, como uma facto, que iriam ser cruciais um para o outro. Vasco desconhecia quando e como, mas, sem margem de dúvidas, decidiu que iria pertencer ao mundo de Mariana.

quinta-feira, 29 de março de 2012

~21~



A porta abriu-se, mas Mariana sentia-se sem acção, estupefacta com os recentes acontecimentos. Vasco… Vasco era um estranho. Mecanicamente, saiu do elevador, arrastando o a bagagem, localizou a habitação, abriu a porta e ao colocar o cartão, as luzes acenderam-se. Deparou-se com um espelho de corpo-inteiro, que reflectia uma pessoa desconhecida. A custo, pousou as peças que a acompanhavam, procurando afastar da memória os momentos recentes, incluindo a sua (nova) própria imagem.

Alheada de tudo, preparou-se para um banho, deixando escorrer a água tépida pelo corpo, desejando afastar todos os vestígios desse dia.

Lentamente, sentiu o cansaço abandoná-la e surgir um relaxamento que há muito tinha desaparecido da sua vida. Entregou-se ao prazer da água, enquanto a voz e a presença de Vasco vigoravam na sua mente.

Sozinha, sorriu, sob a luz impessoal daquele quarto de hotel.

sábado, 24 de março de 2012

~20~



À entrada do hotel, Mariana sentiu um ligeiro arrepio. Tomou consciência da presença física de Vasco e corou, reconhecendo o quanto a sua companhia lhe agradara. Vasco encaminhou-a para a recepção, onde fizeram o check in e receberam a bagagem, horas antes depositada.

Com extrema naturalidade, Vasco conduziu-a ao átrio dos elevadores, fazendo-a entrar no primeiro que chegara, colocou-lhe o troley, carregou no botão correspondente ao piso do quarto de Mariana e sorriu:

- Chamo-me Vasco.

- Mariana.

Enquanto a porta se fechava.

sexta-feira, 23 de março de 2012

~19~



Terminada a refeição, apesar do frio que se fazia sentir, Vasco propôs um pequeno passeio ao quarteirão. Caminharam de novo lado a lado na pequena rua que circundava o hotel, Vasco salientava a escuridão da noite, contrastando com os pequenos farrapos de neve. Mariana escutava-o, mantendo as mãos enluvadas nas algibeiras do sobretudo, e, de vez em quando olhava o céu e de seguida para o rosto de Vasco, onde brilhavam dentes muito brancos e dançava aquele sorriso… o sorriso de Vasco.

quinta-feira, 22 de março de 2012

~18~


Mariana jantou com grande satisfação. A conversa natural de Vasco, descrevendo lugares de que nunca tinha ouvido falar, a emoção e vivacidade das suas palavras acabaram por embalá-la e deixou-se transportar para lugares mágicos. Sem dar por isso, abandonou a postura rígida, correctamente sentada e de antebraços apoiados na mesa, encontrando-se agora bem mais relaxada, absorvendo cada sílaba.

Vasco sentiu-a descontrair e prosseguiu, sem fazer perguntas, sem pausas indiscretas. Queria, sobretudo, que Mariana fosse verdadeira, queria vê-la, senti-la como ela era… Intrigava-o o seu silêncio, Mariana parecia decidida a não querer impressioná-lo, a não querer dar-se a conhecer. Limitava-se a escutá-lo, limitavam-se a estar. Para Vasco, era, por agora, suficiente.

quarta-feira, 21 de março de 2012

~17~


Tomás saltou para a cama, procurando por Vasco, que lhe acariciou o pêlo sedoso. Virando-se, observou a foto à cabeceira, que retratava ambos num dia de praia. Recordou aquele instante da fotografia, o sorriso espontâneo de Mariana, o cabelo a esvoaçar, o brilho de felicidade no olhar.

- É tão especial, Tomás. Tão especial para nós.

Em resposta, Tomás olhou fixamente a imagem, reflectindo-a nos olhos oblíquos e Vasco viu-se espelhado, abraçado a Mariana. Naquele instante, sentiu com intensidade aquele abraço sob o calor do sol… O sol da sua vida.

terça-feira, 20 de março de 2012

~16~


Vasco iniciou a conversa; em tom pausado, contou como descobrira aquele restaurante. Falou da cidade, dos edifícios, da arquitectura tão característica. Mariana escutava-o, assentindo de vez em quando, sentia que Vasco lhe dava espaço para falar. Falaria a seu tempo. Gostava do tom de voz, confiante e seguro, analisava o olhar e sorriso trocistas, mas respeitosos. Vasco não disfarçava o interesse, mas sabia manter a distância que Mariana precisava. Vasco entendeu Mariana desde início: não podia ser inoportuno, limitava-se a ser natural, na sua forma de ser, de estar.

Sem dar conta, Mariana proferiu pequenas frases, complementando o discurso de Vasco, que se sentiu feliz por estas intervenções.

Sentiam uma mútua empatia e algum deslumbramento.

segunda-feira, 19 de março de 2012

~15~


Vasco fez o pedido, sem consultar Mariana. Ao invés de sentir-se ofendida, apreciou o gesto: considerou-o carinhoso, como que a evitar de fazer escolhas. Ainda na presença do empregado, Vasco dirigiu-lhe um olhar interrogativo, buscando a sua concordância. Mariana assentiu com um ligeiro acenar e, pela primeira vez, esboçou um sorriso dirigido a Vasco.

Ficou a admirar a transformação, enquanto o empregado se afastava discretamente: o rosto, agora iluminado pelo sorriso e pela luz da vela que os testemunhava , conduziu-o a outra dimensão. Vasco não conseguia despregar o olhar daquele rosto, já tão querido. Sentindo-se constrangida, Mariana baixou os olhos, mantendo o sorriso. Uma estranha sensação de paz invadiu-a, todo o cansaço se desvanecia e a presença calorosa de Vasco era reconfortante.

domingo, 18 de março de 2012

~14~


O espaço era, de facto, muito agradável. Estilo tasca-chique, muito típico e informal. Prevaleciam a madeira escura e a iluminação suave, resultando num ambiente intimista, tão do agrado de Mariana.

A sala estava quase deserta devido ao avançado da hora. Foram conduzidos a uma mesa pequena e Vasco ajudou Mariana a instalar-se, sempre com um sorriso, aquele sorriso tão característico. Ambos estavam cientes do silêncio, aconchegante, que se mantinha entre ambos - não tinham proferido nenhuma palavra.

Mariana mergulhou o rosto na ementa, resistindo à tentação de encarar Vasco, sentado à sua frente. Encontrava-se ainda totalmente surpreendida por ter aceite o convite de um estranho.

sábado, 17 de março de 2012

~13~



Sem esperar resposta, Vasco encarregou-se da bagagem, entregando-a na recepção, onde informou que iriam jantar e fariam o check in mais tarde.

Na rua, Mariana estupefacta, assistia a tudo, incapaz de uma reacção.

- Vamos. Ali à frente há um restaurante simpático.

Assumia descontracção e tentava transmitir-lhe alguma segurança. Mariana tentou titubear uma recusa, mas faltou-lhe a voz. Por outro lado, o ar natural de Vasco transmitia-lhe alguma confiança. O facto de avistar o restaurante deu-lhe algum ânimo e Mariana caminhou os curtos metros ao lado de Vasco.

sexta-feira, 16 de março de 2012

~12~


Era um fim de tarde qualquer. Parecia, não fosse o espaço quase deserto e a pista coberta de neve. A súbita alteração levou ao encerramento do espaço aéreo. Os passageiros seriam conduzidos para um hotel, de acordo com a informação prestada pela companhia.

Entre murmúrios de contestação, Mariana encaminhou-se para o autocarro, avaliando o incómodo. Percurso breve e rapidamente dirigiu-se ao hotel, quando escutou:

- Vem jantar comigo.

quinta-feira, 15 de março de 2012

~10~



O grupo era, basicamente, sempre o mesmo: algumas pessoas viajavam em grupo de 3 ou 4, outras individualmente. Poucas entabulavam diálogo, nem esboçavam um sorriso: eram “estranhos”, embarcados no mesmo espaço que cruzava os céus.

Ao chegarem ao destino, encaminhavam-se rapidamente para as viaturas que as esperavam ou para a fila de táxis. Era um “até sexta feira”, silencioso e inconsciente. Numa dessas manhãs, Mariana sentiu a presença de Vasco, caminhando a seu lado. Ignorou o olhar trocista, divertido até, lançado por Vasco e apressou o passo.
Era o início de Primavera, o sol inundava a cidade e Mariana quase sorria ao vento leve que lhe assolava o rosto, limpando vestígios de cansaço. Concentrou-se na tarefa que a esperava e, rapidamente, esqueceu o olhar de Vasco.

~11~



Aproximou-se do quarto e deitou-se sobre a cama. De braços cruzados atrás da nuca, Vasco sorria no escuro. Recordava a primeira vez que vira Mariana. Quase escondida, fazendo tudo por passar incógnita. Esta atitude despertou-lhe a curiosidade: Mariana era o inverso de todas as mulheres que tinha visto em quase todos os aeroportos. Distante e discreta.

A Vasco não passara despercebidos os olhares que lhe eram dirigidos e procurou ler, naquele rosto semi-oculto por cabelos lisos, os olhos de Mariana.

sábado, 10 de março de 2012

~9~




O vento satisfez-lhe a vontade e transportou Mariana para “o nosso tempo”, conforme tinha proferido. Abandonou o corpo no canapé, permitindo que a mente voasse através do temporal que açoitava a janela.

A primeira vez que viu Vasco. Que viu não, que o sentiu…naquele aeroporto internacional, de cadeiras duras e cinzentas, tomadas eléctricas para abastecer portáteis e outros instrumentos de trabalho. A sala de embarque preenchida de fatos escuros, camisas brancas e gravatas cinzentas ou azuis.

Mariana procurava sempre um local afastado, onde pudesse encostar o troiley e pousar a pasta. Afastado suficiente para não despertar atenção no mundo masculino e suficientemente longe de outras mulheres, acompanhadas de famílias, que a olhavam com desconfiança, considerando-a uma ameaça. Mariana estava habituada com ambas as situações e tentava geri-las da melhor forma que podia, mantendo-se discreta e afastada até à abertura da porta de embarque. Isso não impedia que despoletasse olhares, sendo de curiosidade masculina ou de malícia feminina, não obstante a aliança, grossa e brilhante, que habitava no anelar esquerdo, acompanhada do magnífico solitário que celebrara o noivado.

A espera, por vezes longa, permitia-lhe esquematizar resumos, anotar ideias em pequenas notas, sumariar relatórios, preparar novas apresentações, enfim, tudo aquilo que era o seu mundo dedicado à carreira profissional que escolhera.

Mariana e Vasco pertenciam ao imigrantes intelectuais, ausentes toda a semana: o primeiro voo à segunda-feira, pelas 07:40h e o último de sexta, pelas 20:05h, de regresso a Lisboa.